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Ciência, poder e loucura em Machado de Assis
BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA - UOL EDUCAÇÃO - 07/04/2015 - SÃO PAULO, SP
A obra literária de Machado de Assis (1839-1908) é sobejamente conhecida. Seus escritos já foram investigados em sua quase totalidade. Não obstante, por sua abertura constitutiva, há sempre caminhos a trilhar na leitura de um clássico, condição sine qua non para que volvamos a ele.
Uma das trilhas que me instiga em Machado de Assis é aquela que leva ao encontro da literatura com a política. Neste percurso, a literatura assume o sentido de revelar as constantes políticas e as variantes sociais que moldam a história e o imaginário das elites dirigentes brasileiras, desde pelo menos o século XIX.
Na obra machadiana, a política é o pano de fundo em que se entretecem as relações desiguais de força, ainda que ajam supostamente em nome da igualdade. O poder é exposto pelo autor brasileiro em seus traços caricaturais, ainda que sempre sutis, combinados à revelação das estruturas de dominação mais recônditas e comezinhas.
A título de exemplo, concentremo-nos em apenas um de seus mais conhecidos contos, o célebre O Alienista, cujo aprofundamento pode nos auxiliar mais que um passeio por sua vasta obra ficcional. O conto está presente em praticamente todas as antologias dedicadas à contística machadiana. Nesta estória, Machado de Assis elege como seu alvo de sátira a ciência, haja vista sua pretensão em compreender o homem de maneira unidimensional.
A partir do conteúdo do conto, infere-se que o saber científico é exógeno à realidade e que se impõe à comunidade circundante com princípios que ela própria desconhece. O olhar da literatura mostra a fragilidade da suposta cisão entre sujeito e objeto, parti pris científico que almeja tudo domar e universalizar.
Em sua instrumentalidade, julga-se que tal cisão é sempre limitada pelo arbítrio do cientista. Ao fim e ao cabo, o expediente satírico de Machado dá a conhecer que a ciência, com seu verniz civilizatório, acaba por servir contra a comunidade em tela, sendo capaz de bárbaras atrocidades, como no-lo mostra o conto em questão.
Nessa ficção, com suas mais de sessenta páginas, o protagonista principal, Simão Bacamarte, cogitava saber de antemão o que era a loucura e qual o método mais adequado para identificar mentecaptos. Tudo isto graças à sua inabalável metodologia de observação do comportamento humano. Bacamarte acreditava poder dominar a técnica do conhecimento que discerne o são do insano. Ao final do enredo, como sabemos, o anti-herói chega à conclusão paradoxal de que a objetividade pode ser subjetiva, na mesma proporção em que a subjetividade, objetiva.
Apesar de sua solidão, o cientista não está só: no conto, os paradoxos rodeiam também a visão da mulher, personificada em dona Evarista; engolfam a visão da Igreja, vocalizada no padre Lopes; aprisionam a visão da política, encarnada não em uma pessoa, mas numa instituição de província: a Câmera dos Vereadores.
Com a elegância narrativa e a sutileza que lhe são peculiares, Machado de Assis transforma a ciência da loucura na loucura da ciência. Ao seu modo, pode-se dizer que se antecipa o próprio século XX, quando o pensador Michel Foucault (1926-1984) redige a sua opulenta História da loucura (1961) ou quando o dramaturgo Antonin Artaud (1896-1948) denuncia o “irrisório e pretencioso mundo da psiquiatria”, no seu comovente opúsculo: Van Gogh, o suicidado da sociedade (1947).
Para que não fiquemos apenas em Machado de Assis, a onipotência científica foi também magistralmente narrada num conto desconhecido do escritor brasileiro Raul Pompéia (1863-1895), intitulado A batalha dos livros. Seu personagem principal, Aristóteles de Souza, morre ensandecido. Por quê? Estudioso inveterado, o protagonista vive num platô das Paineiras, no Rio de Janeiro, isolado dos homens e do mundo, qual Robinson Crusoé.
Mas no seu caso, ao invés do mar, vive cercado por estátuas e livros. O Aristóteles “carioca” busca de maneira insaciável a edificação de um organismo unificado de classificação do mundo. O insucesso na empreitada leva-o ao desespero e, por fim, ao delírio enlouquecedor.
Tanto O alienista quanto A batalha dos livros são contos finisseculares que exibem como a literatura pode se tornar a consciência crítica da ciência positiva e positivista, hegemônica no Oitocentos. O ponto central é postular que a inconsistência científica vem acompanhada da tibieza das ideias e da ausência de posicionamentos políticos. Depois de cometer atrocidades, o alienista reconhece-se afinal como o principal alienado da localidade.
Muito embora os conteúdos sejam comparáveis, o estilo e a narração de Machado de Assis ainda não encontram paridade, quer seja pela maestria de suas incisões – sob a forma dos relatos – quer seja pela proeza de suas digressões – com o recurso às deslocações da história.
O Alienista condensa uma caricatura das pretensões universalistas da ciência, ao menoscabar um sábio cosmopolita que pretende erradicar a loucura de uma região provinciana. Nele, criticam-se a ruptura entre sujeito e objeto, suspendem-se as diferenças entre agente e paciente. Satiriza-se enfim a busca ansiosa e desenfreada por uma teoria que aplaque os males de uma sociedade e, no limite, que redima a própria humanidade. Em sua veia satírica, jaz a crítica demolidora à ambição do controle científico por meios classificatórios obsessivos.
Como para toda a obra machadiana, as “ideias fora do lugar”, propostas pelo crítico de origem austríaca Roberto Schwarz para interpretar Machado, são pertinentes também para elucidar a história narrada neste conto. Em descompasso com a realidade local, mostra-se, por meio da literatura, como a ciência pode fazer as vezes de um objeto alienígena, estranho ao acanhado distrito de Itaboraí, no interior fluminense, desestruturando todo o tecido social, à medida que ela própria, ciência, se implanta com seus doutos ares de civilização.